Nunca li um texto de Scholem Aleikhem. Depois de ir à exposição de Leila Danziger, além de tomar conhecimento sobre o autor, pude descobrir que uma de suas obras mais famosas é intitulada “Tevye e suas filhas” (também conhecida por “Tevye, o leiteiro”), uma série de contos enfocada na figura de um pai de família judeu que habita a Rússia. Estas narrativas foram finalizadas em formato de peça teatral em 1917.
Escrito
por este autor nascido em Pereiaslav, no ainda Império Russo, mas atualmente
inserida na Ucrânia, foi adaptado para o cinema pela primeira vez em 1939, nos
Estados Unidos. Levada para o formato de um musical da Broadway sob o título de
“Um violinista no telhado”, em 1964, a peça foi a primeira a ter mais de três
mil apresentações neste teatro. Impulsionada por este sucesso, a obra foi
novamente apropriada para o cinema, em 1971, mas tendo como base seu texto
musicado. Estes quase cem anos de intervalo até a presente publicação não
separaram o texto original do espectador, mas, sob outra perspectiva, fizeram
uma aproximação com diferentes contornos.
Brasil,
2012. “Souvenir Jerusalém” é o título da série fotográfica de Leila Danziger
inserida em sua mais recente exposição, “Felicidade-em-abismo”. Na parede à
frente da entrada da Capela do Parque Lage, três destas imagens apresentam uma
pequena narrativa que gira em torno de dois objetos a interagir com o espaço
geralmente transformado em postal quando se fala da cidade do Rio de Janeiro –
a praia e as montanhas. Silenciado pela fotografia, lá está o nosso violinista
sobre o telhado de uma casinha de madeira pintada de branco. Se o percorremos
da esquerda para a direita, a lente se distancia dos objetos e acentua sua
pequeneza em comparação com o entorno. Se fizermos o caminho inverso, o pequeno
instrumentista ganha matéria escultórica e confronta a perspectiva da imagem.
O
músico, porém, antes de estar sobre este teto, se encontra apoiado sobre uma
base cuja estrutura imita uma série de tijolos. Uma palavra se faz presente:
Jerusalém. A cultura judaica do autor e da família do personagem Tevye é
evocada pelo nome da cidade santa. Mais do que isso, ao sabermos que se trata
de um pequeno bibelô, comprado na própria cidade, se percebe a dimensão da recepção
dos textos de Aleikhem, ou seja, o personagem literário cuja vida foi escrita
na Rússia se transformou num símbolo do judaísmo vendido como ícone de
Jerusalém. O violinista se verteu em um pequeno monumento capaz de fazer
lembrar Israel toda vez que um viajante observar sua imagem e nome próprio
acima do móvel de sua casa.
Há
um dado dissonante que não passa despercebido nessas fotografias: um
assimétrico pedaço de vidro circunda o musicista. A partir desse vestígio,
concluímos que havia um globo que protegia o objeto e que o inseria numa bolha
de existência paralela ao ambiente que nos circunda. Nesse sentido, a pequena
figura humana tinha um tom de sacralidade da qual foi destituída. Quebrado, em
duas destas fotografias o violinista tem seu corpo aproximado da linha do
horizonte. Na imagem central desta parede, num rápido olhar poderíamos vê-lo
como que colocado sobre esta extensão. E se a cidade do Rio de Janeiro, no
lugar do Cristo Redentor, tivesse um monumento cujo aspecto religioso não se dá
de modo tão óbvio? E se uma escultura pública fosse também incompleta como esta
lembrança de Jerusalém e, mais do que isso, pequenina e proporcional à palma da
mão?
Parece
possível dizer que Leila Danziger faz uma ficção anti-monumental em torno do
Rio de Janeiro. Isso se dá, seja pelas características formais comentadas
anteriormente, seja pela ausência de qualquer certeza de que estamos a fruir a
cidade brasileira – algo colocado em dúvida precisa quando lemos a palavra
“Jerusalém”. Neste sentido, também podemos interpretar o título “Souvenir
Jerusalém” como uma frase escrita em francês, ou seja, “lembrar Jerusalém”. Um
dos princípios do judaísmo, lembrar a História e a importância da cidade que
abrigou o Templo de Salomão, é dado a partir do violinista. Colocando em outras
palavras, poderíamos interpretar estas imagens como um duplo anti-postal. Não
se trata de uma imagem paisagística tradicional de Jerusalém (visto a ausência
de praias em sua localização geográfica em Israel), do mesmo modo que não a
enquadraríamos rapidamente nas fronteiras do Rio de Janeiro por um ruído de
informação. Com isso, Brasil e Israel se chocam, deixam suas denominações
historicamente construídas de lado e se tornam objetos de fruição artística e
construção de poesia.
Encontro
acentuado, no que diz respeito à visitação à exposição, devido a um jogo de
reflexos. Quando me colocava em frente a estas fotografias emolduradas, via
espelhada em seus vidros a imagem em movimento de uma praia em Tel Aviv, uma
das videoinstalações da exposição. As montanhas cariocas eram brevemente
habitadas por mulheres que se banham com os corpos integralmente cobertos.
Nesse jogo de espelhos, todos somos um e o mundo enquanto tabuleiro de xadrez
se torna espaço de convivência, não de batalha. Seguindo com o meu olhar para
estas imagens, outro rebatimento se fazia essencial: o meu próprio. Via um
rosto sobreposto pelas paisagens do Rio de Janeiro e Tel Aviv. Esta tênue
superfície produzia uma imagem minha tão imprecisa e fantasmática quanto aquele
pedaço de vidro ao lado do violinista. Penso: qual seria a minha Jerusalém? Que
lugar e quais narrativas perpassam a minha biografia e mereceriam ser alçados ao
lugar de monumento provisório – fabuloso e fotográfico – sobre a “cidade
maravilhosa”?
Através
da breve lembrança e interpretação da circulação das palavras de Aleichem,
poderíamos montar um interessante mapa imaginário que ladearia Rússia, Ucrânia,
Estados Unidos, Brasil e Israel. Creio que a pesquisa artística de Leila
Danziger opere nessa apropriação e recodificação de imagens e textos de modo
tão movediço como a areia da praia que cobriu, com o passar do tempo, a
estrutura da casa branca que suportava o musicista nesta série fotográfica.
Esta
arquitetura de brinquedo, por sua vez, não se trata de uma moradia qualquer,
mas da casa de bonecas que acompanhou a artista durante sua infância. Esta
informação endossa outra característica que me atrai na sua produção: a
confluência entre História e vida privada, entre documento e anedota. Lembrar-se
de Jerusalém é construir um monumento à história de sua família e à História de
Israel e do judaísmo. Neste sentido, é possível afirmar que essa série de
trabalhos traz à tona uma palavra-chave em sua produção artística: compromisso.
Há aqui um compromisso com a História e uma vontade de tornar visível ao
espectador a fragilidade das fronteiras geográficas e religiosas, prestes a
serem desmontadas como um papel pontilhado; talvez seu maior compromisso seja,
então, com o próprio fenômeno artístico.
Coloco-me
ao lado da artista no que diz respeito ao compromisso em relação à História (e,
precisamente, às narrativas sobre a arte). Mais do que isso, no que diz
respeito a estes trabalhos comentados, um compromisso urge; meus olhos coçam
pela vontade de ler as palavras de Scholem Aleikhem. Num caminho inverso à
linearidade historicista, trilha que possivelmente agradaria a Aby Warburg,
desejo saber quais os outros sons que saem das cordas de seu violino além,
claro, do bater das ondas do mar.
(texto publicado no livro "Todos os nomes da melancolia", lançado em dezembro de 2012, pela Editora Apicuri)
(texto publicado no livro "Todos os nomes da melancolia", lançado em dezembro de 2012, pela Editora Apicuri)
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