Entre os meses de setembro e novembro, na Galeria de Arte do
SESI, em São Paulo, é realizada a exposição “Nelson Leirner 2011 - 1961 = 50
anos”, retrospectiva da produção do artista paulista. As vitrines do espaço
expositivo incitam o passante da Avenida Paulista a ali entrar a fim de
conferir esse importante agrupamento de obras dos mais diversos momentos de sua
carreira. Logo na entrada, ao lado da recepção, uma banca de jornal. Espaço
amplo, tons de vermelho sobre o metal com aparência nova. Trata-se de uma banca
de jornal com roupagem “contemporânea”, como aquelas espalhadas pela Paulista. Não
são mais “apenas” bancas de jornal; tudo é vendido nessas cavernas: ao lado de
publicações brasileiras e estrangeiras encontramos líquidos, doces, cigarro, souvenirs.
A obra de Leirner está baseada nessa configuração. O artista
preenche o espaço interno com elementos encontrados facilmente em bancas
não-artísticas. A seguir sua pesquisa acerca da apropriação de objetos e do
colecionismo, ele pinça fascículos que compõe uma coleção de naturezas-mortas.
Carros em miniatura e pedaços de ossos a fim de serem montados e compor um
esqueleto. Brinquedos em miniatura, alguns adesivos religiosos e outros relativos
a desenhos animados. A História Antiga vem resumida, ironicamente, através de
dois dados: em uma lateral temos miniaturas de soldados romanos, enquanto na
outra extremidade vemos bonecos egípcios.
Leirner cria um kunstkammer,
um “gabinete de curiosidades” da cultura material contemporânea. Um museu
dentro do museu. Um prenúncio dos objetos colecionados, apropriados e recodificados
dentro da sua trajetória artística e a compor esta exposição. É possível entrar
nessa estrutura metálica? Não, há um distanciamento físico por parte do
espectador (opção poética ou museológica?). A própria banca de jornal,
portanto, é transformada em mera imagem, sem o direito da tridimensionalidade
interna, tal qual uma imagem impressa. É quase possível circundá-la, mas o vazio
do espaço destinado funcionalmente à aproximação dos indivíduos com os objetos
salta aos olhos.
E estes objetos são curiosos? Banais demais para sê-lo,
atravessadores de gerações e faixas etárias. Mas todo objeto não seria banal?
Os gabinetes de curiosidades não consistiam justamente na coleção de objetos
exóticos, seja pela sua beleza ou feiúra exorbitantes, pela discrepância
cultural ou pelo distanciamento histórico? Com sua pequena galeria, Leirner dá
o estatuto artístico ao “meramente banal”, tal qual dito por Arthur Danto e coloca
em xeque o possível destino desta cultura material: sua institucionalização
enquanto objeto museográfico. É como diz a primeira página do “Jornal do não
artista”, distribuído ao lado desta instalação: “Hobby – um museu de tudo”. Um
monumento à inegabilidade da musealização, à desbanalização das coisas e ao
significado que aniquilirá o vazio.
Enquanto isso, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
próxima a uma das suas diversas entradas, um pouco afastada dos elevadores do
prédio principal, outra banca de jornal. O título desta é “O que desaparece, o
que resiste (II)” e a autoria é de Leila Danziger. Esta instalação fazia parte
da exposição “Campus (Des)situado”, realizada dentro do 20º Encontro Nacional
da ANPAP, entre setembro e outubro. Das cores e pequenos objetos de Nelson
Leirner para a fruição das prateleiras monocromáticas e vazias. Do espaço
interno do museu para o objeto artístico que está aos olhos dos transeuntes da
universidade.
As pessoas que estudaram ou frequenteram a UERJ possivelmente
tem a lembrança de como esta banca de jornal era decorada com uma variedade de
publicações, todas amontoadas e escapando do seu espaço interno. Uma vez fechada,
a banca foi cedida para a artista e, creio, causou estranhamento a aqueles que
possuíam uma relação, mesmo que de passagem, com a instituição. O gabinete de
curiosidades informativas foi devastado. No lugar das novas publicações, a
artista distribui pelo espaço exemplares de folhas de jornal apagadas pelas
suas mãos, através de fita adesiva. Nomes próprios, manchetes e legendas dão
lugar ao rasgo, ao fantasma do conhecimento, da novidade que rapidamente se
transforma em passado.
Aqui é necessária a entrada do espectador nesta caixa de
metal para se experimentar fisicamente não apenas o vazio espacial, mas também
decorativo. Faz-se importante imaginar ou se lembrar os modos como essa banca
já foi preenchida por um jornaleiro. Reproduções dos seus trabalhos estão à
disposição das mãos do público. Nelas há uma frase do poeta Paul Celan
carimbada, “Para-ninguém-e-nada-estar”. Pouco a pouco, as pilhas brancas
destas folhas dão mais espaço para o cinza.
Três televisores exibem vídeos recentes da artista. O som de
apagar ou rasgar protagoniza “O que desaparece, o que resiste”, onde vemos
apenas as mãos de Leila Danziger a provocar um esquecimento voluntário de
partes dos jornais. Este ato cria poemas visuais em “When man’s castle is a
storage room” (“Quando o castelo do homem é um depósito”), onde manchetes
fragmentadas e somadas dão corpo a versos. Paul Celan aparece novamente, através
da voz, em “Pallaksch, Pallaksch”, vídeo que sobrepõe imagens de jornais com a
paisagem. Vemos folhas de jornal a voar sobre a areia, chegando ao contato com
o mar. O conhecimento, mais do que apagado na superfície, passa a integrar o
mundo e é dissipado no movimento das ondas. Ao fundo da banca, uma imagem que
dialoga perfeitamente com estas em movimento: um agrupamento, uma parede frágil
de jornais é montada. Imagens do céu e do mar em erosão na celulose.
Dois desertos. O deserto criado por Leila Danziger através da
transformação da matéria em pó. Nelson Leirner e o banal que vira matéria através
do excesso oferecido no SAARA; não o deserto, mas o mercado popular do Rio de
Janeiro. Duas interpretações diferentes do gabinete de curiosidades rumo a um
gabinete de perenidades.
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